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A Lei nº 14.825/2024 demonstra ser crescente a preocupação em reforçar a segurança jurídica nas transações imobiliárias, com vistas a proteger os compradores de eventuais surpresas negativas após a formalização da venda e transferência da propriedade, especialmente aquelas causadas por eventuais dívidas próprias ou de terceiros, de natureza civil ou tributária, que venham a recair sobre bens imóveis.
Explico melhor: em transações envolvendo a compra e venda de imóveis, exige-se a observância do dever de diligência de ambas as partes, mas especialmente do comprador, que tem o ônus de providenciar certidões fiscais, certidões de propriedade, entre outras informações exigidas no momento da lavratura da escritura de compra e venda, na forma da Lei nº 7.433/1985.
As diligências são, nesse contexto, fundamentais para garantir que o comprador, de um lado, conheça as condições do imóvel, principalmente no que se refere a eventuais dívidas que possam sobre ele recair. De outro lado, as diligências também são de fundamental importância para o vendedor, especialmente no que se refere às condições de pagamento, dentre outras.
Diante desse cenário, para que haja conhecimento pleno sobre todas as circunstâncias relacionadas à venda, é preciso que essas circunstâncias possam ser previstas a partir da análise dos documentos obtidos, isto é, é preciso que as informações constem dos registros públicos para que se presuma o conhecimento delas por parte do pretenso comprador.
Ao longo do tempo, foram inseridas no ordenamento jurídico diversas normas voltadas a garantir a validade dos negócios jurídicos que envolvem compradores de boa-fé, sendo assim considerados aqueles que, cumprido o denominado “dever de diligência”, não tenham ciência de quaisquer condições que pudessem invalidar a alienação do imóvel, onerá-lo com eventuais dívidas titularizadas pelo antigo proprietário ou quaisquer outros óbices à manutenção do regular direito de propriedade.
É o que se extrai, por exemplo, do disposto no artigo 844 do CPC/2015 [1] e do artigo 54 da própria Lei nº 13.097/2015 [2], que resguardam a segurança jurídica nas negociações de imóveis de compradores imbuídos de boa-fé. A lógica adotada pelo legislador vem, inclusive, sendo aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que editou a súmula 375 indicando que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”, reforçando a proteção da boa-fé objetiva dos compradores.
Ainda que a proteção da boa-fé nas alienações de imóveis esteja devidamente disciplinada na esfera cível, os contribuintes encontram desafios para o seu reconhecimento perante a administração tributária.
Isso porque, diferentemente do entendimento aplicado às execuções de dívidas não tributárias, a mesma corte, no julgamento do REsp. 1.141.990/PR (tema repetitivo 290), de relatoria do ministro Luiz Fux, firmou entendimento pela inaplicabilidade da súmula 375 às execuções fiscais, sob o argumento de que o artigo 185 do CTN presumiria fraudulenta a alienação de bens ou rendas por sujeito passivo com crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa, não prevendo como condição para o reconhecimento da fraude à execução a prova de má-fé por parte do comprador.
Comprador diante de tratamentos distintos
O cenário atual revela uma grave antinomia jurídica, na qual, de um lado uma norma reconhece a boa-fé e resguarda o direito de propriedade do contribuinte enquanto, de outro lado, outro comando fere o princípio da proteção da confiança legítima e expõe o contribuinte a constrições patrimoniais com base em registros que ele sequer poderia ter conhecimento. Em outras palavras, a partir de uma única transação, encontra-se o comprador diante de dois tratamentos completamente distintos, a depender da natureza da execução.
Pois bem. Estabelecida a necessária síntese do panorama que se expõe diante dos contribuintes, passamos a analisar o conteúdo da protagonista deste texto, a Lei nº 14.825/2024.
Em leitura do texto inicial do Projeto de Lei nº 1.269 de 2022, extrai-se que a intenção legislativa era, precipuamente, disciplinar os efeitos jurídicos decorrentes das declarações de indisponibilidade de bens, validando a eficácia de negócios jurídicos imobiliários celebrados mediante boa-fé sobre imóveis bloqueados judicialmente em ações de improbidade administrativa.
Após a tramitação legislativa regular, o PL 1269/2022 resultou na publicação da Lei nº 14.825 de 20/03/2024, que adicionou o inciso v ao artigo 54 da Lei nº 13.097/2015, nos seguintes termos:
Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:
V – averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel, inclusive a proveniente de ação de improbidade administrativa ou a oriunda de hipoteca judiciária.
O advento do novel dispositivo legal se mostra louvável para a finalidade a qual pretende alcançar, ainda que a segurança das negociações de imóveis de compradores já estivesse devidamente garantida, desde que não envolva dívida tributária, como já adiantados ao longo deste texto.
Contudo, a exegese do inciso adicionado parecer conceder alcance abrangente aos seus efeitos, porquanto atribui eficácia aos negócios jurídicos em relação a atos jurídicos precedentes quando não tenha havido averbação de “qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel”.
Para reforçar a amplitude de seus efeitos, utiliza-se o advérbio “inclusive” para indicar que esta regra também se aplica aos casos de improbidade administrativa ou de hipoteca judiciária. Com isso, o texto esclarece que sua aplicação não se limita aos casos de improbidade ou de hipoteca.
Tais premissas nos levam a inferir que o legislador, mais uma vez, ratifica sua vontade no sentido de estabelecer a necessidade de registro prévio de qualquer fato que possa interferir no direito de propriedade do comprador que age com boa-fé, não fazendo qualquer distinção em relação à natureza do processo que enseja a restrição, enfatizando o seu alcance a “qualquer constrição”, alcançando as constrições realizadas em execuções fiscais.
Considerando a expressa obrigação de averbação das constrições judiciais na matrícula do imóvel, presume-se a boa-fé do comprador caso a averbação não tenha sido realizada, o que, em tese, levaria à convalidação do negócio jurídico perante a execução, nos termos do já referenciado artigo 54 da Lei nº 13.097/2015.
Reconhecemos, contudo, que a aplicação deste novo dispositivo para convalidação das alienações imobiliárias perante as execuções fiscais esbarra no artigo 185 do CTN, o qual institui que basta a inscrição em dívida ativa prévia à alienação para que se presuma fraudulenta a negociação, especialmente porque este artigo do CTN serviu como argumento fundamental para a definição do Tema Repetitivo 290 no STJ.
Neste caso, a Lei nº 14.825/2024 não resiste aos critérios de resolução deste aparente conflito de normas perante o CTN. A afirmação acima se justifica pelo fato de que, além de dispor especificamente de normas tributárias, o CTN fora recepcionado pela Constituição com status de lei complementar. Sendo assim, poderia se sustentar que o CTN prevaleceria diante de sua especialidade, no que se refere à matéria tributária. Além disso, o inciso adicionado ao artigo 54 da Lei nº 13.097/2015 determina a necessidade de averbação de constrições na matrícula do imóvel, mas não dispõe sobre a inscrição em dívida ativa, que é o fenômeno que materializa o artigo 185 do CTN.
Ainda assim, diante da premente necessidade de se estender às execuções fiscais as regras já estabelecidas e respeitadas nas execuções não tributárias, a Lei nº 14.825/2014 representa mais um importante avanço, reforçando a necessidade de se considerar os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima e, principalmente, da boa-fé objetiva, devendo ser interpretada, a despeito os entraves legais já existentes, como um coeficiente a ser somado aos esforços dos contribuintes na busca por maior estabilidade aos negócios jurídicos perfectibilizados.
[1] Código de Processo Civil de 2015. Art. 844. Para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, cabe ao exequente providenciar a averbação do arresto ou da penhora no registro competente, mediante apresentação de cópia do auto ou do termo, independentemente de mandado judicial.
[2] Lei n.º 13.097/2015. Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:
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é advogado e professor de direito tributário.
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